Pietra em Entrevista ao I - O Melhor Defesa Direito da Minha Infância
Benfica - Cova da Piedade, Taça de Portugal, 17 de Março de 1985
Quando acabámos a conversa com Pietra desligámos e percebemos que faltava uma pergunta. Voltámos a telefonar.
Pietra! Desculpe lá mas tem de nos explicar de onde vem o nome Minervino. "Epá, a minha madrinha devia estar com uma grande bebedeira! Era uma tia minha, irmã do meu pai... Nunca procurei saber, mas acho que o nome tem a ver com os meus antepassados. É que a minha família vem de Itália", disse-nos. Mas chamavam-lhe Minervino no balneário? "Não, aí era o Pietra, sempre foi esse o meu nome de guerra e de homenagem ao meu pai. Bom... às vezes chamavam-me ''Minervas'', porque enervava muita gente."
Minervino José Lopes Pietra, 57 anos, é treinador-adjunto de Jorge Jesus no Benfica, clube aonde regressou na época passada depois de lá ter ganho quatro campeonatos e cinco Taças de Portugal, entre 1976 e 1987. Mas mais: Pietra estava na equipa encarnada que em 1982 somou 18 vitórias consecutivas, três jogos pela mão de Lajos Baroti e os outros 15 às ordens de Eriksson. Esse recorde foi agora igualado após a vitória contra o Sporting, na meia-final da Taça da Liga.
Mais uma vez, lá estava Pietra. E agora aí está ele.
Pietra, tudo bem? Fala o Filipe Santos, do i, presumo que já sabe porque estamos a ligar-lhe...
Já lá vão quase 30 anos, não é? Bem, nunca tinha imaginado voltar a viver uma coisa destas. 18 vitórias seguidas!
A sequência de 1982 começa nos últimos três jogos de Baroti, mas acaba como os primeiros 15 de Eriksson, que fez uma entrada de sonho no clube. Como foram esses tempos?
O Eriksson trouxe-nos uma nova forma de liderança, num misto de liberdade e de responsabilidade. Anteriormente os métodos eram muito rígidos, mas o Eriksson deixava os jogadores à vontade, entregues a si próprios. Nós sentíamo-nos valorizados com essa responsabilidade e isso, claro, reflectia-se no rendimento. Não estou a dizer que anteriormente havia indisciplina, pelo contrário, mas com o Eriksson passámos a ser vistos com outros olhos. Depois houve outra questão importante: evoluímos muito na forma de jogar, na organização em campo. Deixámos de ser uns loucos a correr atrás da bola, continuámos a correr mas sabíamos o que estávamos a fazer. Mas atenção, quando estava a falar da liberdade concedida pelo Eriksson é bom saber que quem pisava o risco também sabia que não ia longe. Isso era certo.
E o Pietra pisava o risco?
Não, eu era um jogador muito responsável, embora não parecesse. Aliás, houve muita gente que criou a ideia contrária apenas porque era irreverente e fervia um bocado, mas isso era apenas a minha postura dentro do campo - lá dentro não tinha amigos, era um bicho- -do-mato.
E também marcava uns golos. Assim de repente, nessa série de 18 jogos marcou pelo menos ao Lokeren, para a Taça UEFA.
É verdade, marquei nesse jogo e em muitos, por isso é que acabei a carreira com uns 30 golos [dez no Belenenses, onde jogou quatro temporadas antes de se transferir para a Luz], o que é assinalável para um jogador que foi muitas vezes um defesa. Há aqui um aspecto importante, a polivalência: muita gente não sabe mas eu no Benfica só não joguei a guarda-redes, de resto fui lateral-direito, esquerdo, central, joguei na frente, sei lá... e assim foi natural marcar alguns golos, o que me faz sentir orgulhoso - na verdade hoje em dia vejo muito poucos jogadores como eu.
Quem era o maior nesse Benfica?
Ah... Chalana, Alves, Bento, Shéu, Nené, Humberto Coelho, Carlos Manuel, Filipovic... quando se é novo é fácil fixar um jogador, mas hoje não consigo destacar alguém. A idade faz-nos pensar mais em equipa e menos em individualidades. O Chalana ainda foi jogar lá fora, no Bordéus, o que na altura era mais extraordinário, porque não havia cá esta coisa dos empresários, mas a equipa tinha grandes jogadores.
O Chalana disse que essa equipa foi o melhor Benfica desde o tempo do Eusébio.
É capaz de ter razão, mas também não é por acaso: as melhores equipas não são aquelas que apenas têm bons jogadores, são as que ganham títulos, e nesse ano o Benfica ganhou tudo a nível interno: campeonato e Taça, e ainda foi à final da Taça UEFA [primeira equipa portuguesa a consegui-lo; na decisão com o Anderlecht, a duas mãos, o Benfica perdeu 1-0 em Bruxelas e empatou 1-1 em Lisboa].
E ganhou a Taça de Portugal frente ao FC Porto, numa final em pleno Estádio das Antas...
Foi nesse ano?
Foi pois. Lembra-se desse jogo?
Eriksson ensinou-nos que devíamos jogar da mesma forma dentro e fora do Estádio da Luz, sempre para ganhar. No meu tempo, antes de ele chegar, havia algum receio nos jogos fora de casa, criou-se aquela ideia de que se ia a Liverpool, ao Bayern ou ao Real Madrid com aquela "sensação"... com aquele "mas"... porque depois se dava a volta ao resultado no inferno da Luz - ficávamos à espera de resolver os jogos em casa. Também se criou a ideia de que era difícil ir jogar ao Porto, mas o Eriksson alterou essa mentalidade, fez--nos acreditar que era possível jogar com outra atitude, e ganhámos.
Hoje o Benfica também tem essa atitude?
Sem dúvida. E eu sinto-me um privilegiado por estar a testemunhar isso mais uma vez, mas numa posição diferente. Só tenho pena que tenha passado tanto tempo para se igualar este recorde. É verdade que isto não acontece todos os anos, mas um clube como o Benfica não pode demorar décadas a viver isto. 30 anos? A grandeza do clube merecia mais.
Acompanha todos os dias o trabalho de Jorge Jesus e viveu o tempo de Eriksson: é possível fazer alguma comparação?
Sabe que hoje o trabalho é todo muito diferente, embora o fenómeno ou o jogo sejam muito semelhantes. Penso que a comparação possível se faz ao nível da organização - não escapa um único detalhe.
Então diga lá o que lhe passa pela cabeça quando vê o Fábio Coentrão marcar um golo? Lembra-se de si?
Olhe que eu não ia falar sobre isto, você é que perguntou! É interessante que faça essa pergunta porque quando vejo o Coentrão lembro-me muitas de mim: o Fábio Coentrão chegou muito jovem ao clube, como eu; jogava como médio mas passou a defesa, como eu; é magrinho, não é o protótipo do atleta, como eu não era; mas admiram-se com o facto de ter tanta raça e ser tão rijo, como comigo. Somos parecidos em muitos aspectos... o Fábio Coentrão leva uma electricidade impressionante ao jogo. É engraçado, somos muito parecidos. Ah, só gostava de fazer uma ressalva: ele tem um pé esquerdo muito melhor que o meu [gargalhada]... Ah, mas o meu direito também é melhor!
Pietra, como é que vai acabar esta temporada? Igual à de Eriksson é complicado, porque no campeonato o Benfica está a oito pontos do FC Porto.
Nós acreditamos que vamos acabar por conquistar as provas que ainda podemos discutir. O campeonato não depende só de nós, será difícil, mas aí estamos para o que puder acontecer.
Depois de tantas vitórias, um dia vem inevitavelmente uma derrota. E aí o que diria Eriksson?
Nada de especial, talvez algo até bastante simples, como lembrar que "não há equipas invencíveis". E depois continuar a jogar da mesma forma.
E pronto, aí está Pietra. Esta época pode sempre ganhar um título impossível no tempo de Eriksson: a Taça da Liga, que não existia. Para isso basta vencer a final com o Paços de Ferreira, que ontem eliminou o Nacional na Choupana, com um surpreendente 4-3.
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